sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Hoje vou voar até mais tarde

O Verão estava no fim. Bateste à minha porta e quase em sussurro pediste-me para entrar. Respondi afirmativamente e com a minha errada simpatia sugeri que tomasses chá comigo, naquele cantinho especial.  Os teus olhos iluminavam tanto que era difícil olhá-los directamente e por isso recorri a um discurso tolo e sem sentido sobre música clássica e pianos voadores. Tu gostavas de coisas sem sentido, nada de clichés e por isso quando te ris-te não foi por me achares maluca mas porque sabias que, tal como eu, tinhas acabado de encontrar alguém que te completava. Quando dei por mim foi impossível pedir que saísses apesar das tardes horas que o relógio tocava e por isso deixei-te ficar até porque as borboletas que me assaltavam o estômago teimavam em não me largar. Passaram-se horas, dias, meses. Tu teimavas em não largar o sofá onde tínhamos bebido o primeiro chá. Eu gostava, sabia-me bem ter-te por perto mesmo que longe. Éramos tão iguais como diferentes e isso cativava-me. Aos poucos o teu discurso começou a ficar cada vez mais silencioso. As chávenas a ganharem pó e o sofá onde tu te sentavas começou a ganhar a forma do teu corpo. Não do meu, não do nosso. Do teu. Eu queria loucamente que ficasses comigo, apesar da voz da razão te querer mandar embora. Um dia olhei para ti e quase não te reconheci. Não sabia que pessoa eras, e tudo o que tinha feito sentido até agora, não passavam de puras fantasias que a minha cabeça imaginava. Tudo se desmoronou. Os bancos foram atirados às paredes que por sua vez ficaram riscadas pelas lágrimas que derramei nas noites de lua cheia. O cantinho deixou de ser especial e passou a ser algo tão normal, como uma passadeira no meio de uma grande cidade. As chávenas do nosso primeiro chá, sim, aquelas chávenas, partiram-se quando finalmente tive a coragem de me chegar ao pé de ti sentado no sofá e te disse 'Faz o favor de te levantares e saires do meu coração para sempre. Não vou voltar a abrir-te a porta, nem a tomar chás contigo porque hoje, bem, hoje eu vou voar até mais tarde'.

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